Noitário

12/09/2015 – Bate-Papo Virtual com a Leitora Thinai Gonçalves

ThinaiO Passado, o Presente & o Futuro de Brasiliana Steampunk

Bate-Papo Virtual com a Leitora Thinai Gonçalves

A internet e as redes sociais possibilitam, acima de tudo, conexão. Entre lugares, tempos e, o mais importante, pessoas. Para mim, desde que Lição de Anatomia foi publicado, há quase um ano, uma das melhores surpresas tem sido a resposta de leitores & leitoras aos cenários de Porto Alegre dos Amantes, aos heróis que integram o Parthenon Místico ou o casal de protagonistas do romance: o temível doutor do título e a escritora feminista Beatriz de Almeida & Souza, que também responde pela alcunha de Dante D’Augustine.

Há também histórias engraçadas sobre leitores estarem no metrô ou no ônibus ou em outros contextos – como fila do banco! – e encontrarem outros leitores lendo O Alienista de Machado de Assis ou O Cortiço de Aluísio de Azevedo, produzindo assim um diálogo mesmo que indireto entre o Simão Bacamarte ou a Rita Baiana de Brasiliana Steampunk. Ou ainda sobre ganharem o livro das namoradas que terminaram de ler antes deles ou de pais comprando o romance para seus filhos – que eu espero, não tenham menos de dez anos – e o devorarem em dois dias e depois guardarem o livro até que seus filhos cresçam um pouco mais ou então de filhas e pais – nas faixas etárias de quarenta e setenta anos – lendo o romance e adorando, seja a história de suspense ou ainda o mosaico narrativo. Isso para não citar aqueles ou aquelas que reclamam que seu exemplar veio com defeito, visto que as páginas 223 e 225 estão com um erro de impressão. Não consigo não conter um sorriso.

E esses relatos, elogios, confissões e reclamações não chegam por telefone ou mensagem de celular ou por carta da editora ou fax – hã?! – e sim pelas deliciosas caixinhas de mensagem das redes sociais, tanto em meu perfil quanto na página de Brasiliana Steampunk. Como disse antes, conexão.

Pra um autor, não há nada mais importante do que obter a resposta de seus leitores, e não é à toa que nos agradecimentos do livro são a eles que agradeço especialmente, depois de citar os amigos, colegas, parceiros e pessoas especiais que de uma forma ou outra estiveram envolvidas no processo de criação do primeiro volume da série.

Às vezes, entretanto, encontramos leitores um pouquinho mais obsessivos com suas opiniões e um tanto prolixos em seus comentários. Como sou eu mesmo bem obsessivo e insuportavelmente prolixo, aprecio muito esses contatos. Foi o caso da querida Thinai Gonçalves, de Salvador. Depois de me contatar no Facebook, trocamos e-mails e então tive o prazer de receber duas cartas – com uma média de mil e tantas palavras cada – sobre suas impressões do livro.

Como fiz anteriormente, com a postagem do Diego “Adapak” Henrique, essa nova entrada em meu noitário objetiva responder ao comentário de Thinai. Como fiz anteriormente, deixo o texto dela em negrito e minha resposta logo abaixo, transformando suas duas mensagens num diálogo, uma vez que ela tocou em vários pontos que adoraria discutir sobre os personagens e a própria estória de Lição de Anatomia. Exceto por pequenas edições, segue o texto de Thinai na íntegra. Como podem ver, ambos somos bem prolixos.

Um beijo a ela e um abraço a todos os leitores & leitores de Brasiliana Steampunk.

Sinto-me honrado em conectar a cada um de vocês.

Com carinho,

Enéias Tavares

PARTE I

Olá, Enéias!

Como havia prometido, comentários sobre o livro! (sim, sou a Nai-chan que te adicionou e sim, Thinai é o meu nome mesmo u.u )

Que nome legal! Bem diferente.

Então, primeiro ponto: eu gostei da forma arcaica da escrita! Achei realmente legal, embora tenha ficado indignada por ter que esperar quase uma hora para descobrir o que era uma “litania de epítetos” tendo um dicionário online ao alcance. E “Litania”, você realmente gosta dessa palavra, não é? Das palavras menos usuais, essa é a que mais se repete. (E “efebo” também. Gosto dessa palavra. “Jovens Efebos”).  E tinha muito tempo que um livro não me fazia ficar com um dicionário (online) aberto. Até dá para compreender o significado da grande maioria das palavras pelo contexto, mas gosto de olhar o que significa exatamente. Embora concorde que o entendimento é mais importante que o significado em si. Tipo “Coquete”. Você usa sempre para se referir a prostitutas, não?! Mas pelo dicionário não é exatamente isso, mas de boas.

Uma das coisas que mais valorizo, Thinai, é o cuidado com o vocabulário. Há um desafio em não soar hermético ou pretensioso, o que consigo ora sim ora não. Mas como Brasiliana Steampunk é também esse elogio ao passado e ao vocabulário dos nossos romancistas, achei importante investir nisso. E fico feliz que mesmo indo ao dicionário, tu não tenha desistido da leitura, o que muitas vezes ocorre quando tropeçamos em algum termo desconhecido.

Eu já falei pelo facebook o quanto gostei do seu livro e que o indiquei para um monte de gente, não é?! Ultimamente tenho tido dificuldade para me prender a um livro devido a estava mental ( e ficar no scroll do facebook ou assistindo hora da aventura parece TÃO mais fácil u.u ), mas estou conseguindo ler o seu bem rápido! Apesar da linguagem, estava sendo uma leitura leve e tranquila no inicio. E confesso que em algumas partes até fiquei “Ok, cadê a ação mesmo? A história de fato?” Aí chegou na parte do Alienista e eu fiquei WOW!!!! A leitura ficou menos “leve” e mais tensa, mas li ainda mais rápido! PQP! Foi um dos momentos em que quis entrar no livro para dar um tiro na cabeça de um personagem. Li O Alienista há 8 anos, se não me engano, e lembro de pouquíssimas coisas, mas isso não fez muita diferença. Fiquei torcendo para o Louison matá-lo de alguma forma cruel logo.

Alguns leitores, querida, tem reclamado que acham a primeira parte de Lição de Anatomia um pouco lenta. E penso que Isaías Caminha é sim um narrador desafiador, apesar de eu adorar o estilo decadentista de Lima Barreto. Mas queria também provocar esse impacto: uma relativa lentidão na primeira parte – necessária para descrever o universo da série – para então mergulhar na loucura absurda do Simão Bacamarte e sua reforma do Asilo São Pedro para Criminosos Insanos e Histéricas Descontroladas. Quanto ao próprio Simão, concordo: é um dos personagens mais odientos do livro, uma vez que representa tudo o que deu errado no início do século passado, com seu discurso preconceituoso, moralista, misógino e cientificista.

A propósito, eu sabia que o Louison não era bem um “vilão”. Comecei a ler, a ver toda a “litania de epítetos” dirigida a ele e fiquei “Hummm…. Não teria graça ele ser um psicopata simples.” Aí o Isaías viu a gravação da palestra dele e ficou embasbacado. Todo encantado pelo Louison e pensei “Certo. Ele pode ter cometido esses crimes, mas há algo por trás disso. Ou então eu jogo o livro pela janela!”. Aí o Brito falou que as vítimas eram pessoas “não muito bondosas” e vi que ali teria mesmo um motivo. Não terminei ainda o livro, mas tenho uma forte teoria sobre isso. Depois conto se acertei.

Sobre esse ponto, Thinai, vou tentar editar nossa conversa pra não dar spoiler aos leitores que porventura não tenham lido o romance, cuidado que manterei ao menos na primeira parte desta conversa. Mas uma coisa importante: apesar do romance brincar com os estereótipos do vilão, do herói, da dama fatal, etc, queria justamente partir desses elementos para chegar a tons e sobretons psicológicos que resultassem complexos. A ideia seria justamente contrariar a acepção comum de que Louison seria um monstro assassino psicótico ao revelar, pouco a pouco, as motivações de seus “crimes”. Até aqui, tuas suposições estão certas.

E voltando ao Simão… Eu achei MUITO BOM o fato de ter a narração dele em primeira pessoa. Porque aí ele não ficou como um personagem que faz maldades à toa. Mostrou que ele realmente acredita estar fazendo o bem. E o pior/melhor é que ia mostrando a fé dele em ser um verdadeiro salvador da humanidade enquanto mostrava o quão absurdo eram os métodos dele. Foi a partir disso que o livro me conquistou mesmo. A despeito de eu querer entrar na história para dar um tiro na cara dele. Mas é… Acho que sou uma leitora masoquista. Gosto de histórias que me angustiam, me deixam agoniada, com raiva, chorando e afins. Vai entender…. E a parte do Simão realmente me agoniou!

Duas coisas legais desse comentário. Minha principal influência é Alan Moore e algo que adoro na obra do mago inglês é o fato dele recusar estereótipos, mesmo ao escrever vilões detestáveis e abjetos. Aprendi isso com ele. Por mais que um personagem cause repulsa e raiva, precisamos fazer um mínimo exercício de alteridade para nos colocar em seu lugar, para tentar ver o mundo a partir de sua ótica. A recusa a esse exercício imaginativo é justamente o que produziu nas décadas posteriores a 1910 o horror dos campos de concentração e dos sistemas ditatoriais. Quando Simão defende a frenologia, por exemplo, ou a experimentação com seres humanos, é àquele registro discursivo e histórico que estou me reportando. E concordo contigo, por mais que tenhamos vilões terríveis à frente – falo dos integrantes da Camarilha da Dor –, Simão é aquele que nos desafia a manter a calma, apesar da “litania” – desculpe, querida, não resisti! – de absurdos pronunciados por ele. Um deles, o suposto perfil psicológico do “Assassinato da Nata”, um texto igualmente cômico e assustador.

Aaaahh outro ponto importante que não posso deixar de mencionar. A descrição que você faz das mulheres. Acho que há um tempo atrás eu nem problematizaria isso tanto, mas assim… Todas as mulheres da história são descritas pelo Isaías como seres sobrenaturais praticamente. Lindas, elegantes, sensuais, misteriosas, gostosas e afins. Isso me faz pensar se o cara já tinha visto alguma mulher antes na vida ou se de repente foi tragada para um mundo onírico ou sei lá o que. Acho muito válido mulheres de personalidade forte na história, mas tentando explicar melhor o meu ponto… Recentemente uma amiga me mostrou um quadrinho que ela fez, onde um homem vai atrás de um ser mitológico e fica, inicialmente, decepcionado ao achar que o ser tinha uma aparência de uma mulher comum, pois esperava algo grandioso e surreal devido as histórias que escutava sobre ela, de homens que haviam morrido e matado por ela. E a mulher fala que ela é tão comum quanto as mulheres humanas, e que os homens se apaixonam justamente por “mulheres comuns”. E ao longo da história, o rapaz vai vendo o que há de excepcional dentro da “normalidade” daquele ser e acaba se apaixonando por ela também. Então meu ponto é que: ok, é ficção, ela precisa ser interessante para prender as pessoas, mas ao que tange relacionamentos é sempre surreal até quando devia ser comum.  Porque a mulher precisa ser ou a femme fatale ou a donzela virginal. Em ambos os casos, com uma beleza surreal. Ou isso ou tem os terríveis casos semelhantes a “Crepúsculo/50 Tons de Cinza” onde a mulher é uma idiota, mas com “um grande potencial que apenas ela não nota” (porque saudades autoestima). E desse contexto surgem os homens surreais lindos, ricos, montados em cavalos brancos e bla, bla bla. Você conhece a trilogia Milenium?! Já tive uma longa discussão com algumas pessoas que achavam um absurdo o Mikail (um dos protagonistas) ficar com tantas mulheres sendo que ele não era lindo e milionário (ignorando a lista de qualidades dele como ser inteligente, gentil, prestativo e afins), bem como no próprio livro alguns personagens criticam aqueles que sentem atração pela Lisbeth (outra protagonista) por ela não ser nem a típica femme fatale e nem a donzela virginal e, olha só, ter o direito até mesmo de sair mal numa foto 3 por 4 de identidade! Então essa é uma critica literária geral, não só para sua história. Queria mesmo ver algo mais “real” no que tange pessoas e relacionamentos. (Porque aí tem gente se casando com personagem de vídeo game porque não achou a mulher ideal e a sociedade fica sem saber o que causou isso U____U ).

Tocaste aqui, Thinai, num dos grandes desafios narrativos que me propus em Brasiliana Steampunk. Tentarei avançar ponto a ponto. Primeiro, Isaías vê as mulheres da história, em especial as damas do Palacete dos Prazeres e Vitória Acauã, desse jeito porque este é o estilo narrativo criado por Lima Barreto em sua história. Nela, há um sujeito chamado Floc – ao qual remeto brevemente em Lição de Anatomia – que se mata justamente porque teve uma visão dessas mulheres assombrosas numa grande festa. Por outro lado, há no romance uma tentativa de não criar personagens femininas frágeis e vitimadas, o que é bem comum em histórias de aventura ou de fantasia. Em minha história, costumo brincar, não há “meninas em perigo” e sim meninos. Por outro lado, fugir dessa tipificação acaba incorrendo em outra simplificação, como bem mencionaste. Se a personagem feminina não for pura então ela é puta (numa gangorra superficial que acabou norteando muita da literatura ocidental produzida nos últimos três mil anos, vide a esposa fiel da Odisseia de um lado e os monstros femininos como Circe de outro). No caso das femme fatales, elas acabam sendo um estereótipo do período retratado no romance e eu quis especialmente aludir a elas, mesmo que tentasse – em especial em personagens como Vitória Acauã e Beatriz – quebrar com esse paradigma. Fiz isso não apenas ao mostrar os efeitos que elas produzem sobre heróis masculinos como também dando voz às angústias e buscas existenciais dessas personagens. De qualquer modo, tentei evitar a objetificação superficial do feminino, apesar do romance aludir a obras e narradores que fazem justamente isso. Quanto às obras que mencionaste, adoro Milenium e acho que a Lisbeth é uma das personagens femininas mais fascinantes que vimos nos últimos anos. Eu a colocaria ao lado da Clarice Starling, de Thomas Harris, certamente. Adorei tua análise desse problema e dialogar contigo me fez repensar outras coisas, sobretudo para o segundo volume da série.

Outro fato que me deixou surpresa/feliz com a história foi a existência de casais homossexuais lá (uma amiga minha decidiu comprar depois de alguns spoilers sobre o Bento e o Sergio XD ). E confesso que quero correr para ler o conto sobre o Bento mais por causa de “Bento e Sergio” do que pela plot em si. O seu livro tem personagens bem variados e isso é muito bom. O preconceito descrito me pareceu bem coerente com a época, mas imagino se você já recebeu comentários negativos a respeito dessas coisas.

Além da representação do feminino, fico muito feliz de tratar da homoafetividade de uma forma tão séria e delicada, buscando esse elemento nas obras aos quais refiro. Algumas pessoas me elogiaram por criar os casais gays da história, o que sempre corrijo: não os criei de forma alguma. Antes, apenas dei continuidade às relações já presentes em O Cortiço, no caso de Pombinha e Léonie e em O Ateneu, no que concerne a Sergio e Bento. E não, felizmente, não recebi crítica alguma sobre esse aspecto do romance, apenas comentários positivos. Espero que o livro alcance um público que possa ver nessa variedade – de orientação e não apenas étnica e social – uma alusão à multiplicidade cultural com a qual todos nós convivemos hoje. Não podemos mais ignorar esse assunto, assim como não podemos mais nos comportar como as gerações passadas no que tange ao feminino e à sua representação ficcional. Apenas quando virmos esses temas sendo tradados com seriedade e respeito na arte e na ficção é que poderemos finalmente avançar em termos sociais e culturais. E adianto: os protagonistas do segundo romance serão Bento e Sergio, além de Vitória, e pretendo aprofundar bem mais essas questões doravante. Sobretudo, porque acredito que literatura seja, tanto para o autor como para o leitor ou leitora, um maravilhoso exercício de alteridade. Se eu conseguir sensibilizar a audiência com o universo de Brasiliana Steampunk para esses temas, ficarei bem feliz.

E quanto ao livro, vou comentar mais assim que terminar de ler (o que significa até sábado, se o trabalho permitir). E pontos externos à escrita:

O site precisa de uma caixa de diálogo mais evidente e e-mails destacados para as pessoas localizarem com mais facilidade.

Concordo. Estamos repensando ele completamente para ficar mais interativo.

Achei legal ter no site espaço para as pessoas mandarem fanarts!

Ficamos no aguardo de mais. Na próxima semana, por exemplo, vamos divulgar quatro artes enviadas pelo leitor Dirceu Santana que ficaram bem legais.

E mil parabéns ao Diego Cunha pelas ilustrações dele!

Olha só, Diego!

E no fim o e-mail não chegou a 5 paginas porque tenho que ir dormir, mas 1.187 palavras bastam por agora!

Até breve (ou até quando conseguir parar para responder tudo isso)

Até daqui a pouco, querida.

PARTE II

Vamos agora ao segundo e-mail enviado pela Thinai. Aos que ainda não leram o romance, recomendo que interrompam a leitura aqui, uma vez que há diversos spoilers para muitos dos mistérios do Volume I de Brasiliana Steampunk. Preparados

Terminei o livro! Disse que ia terminar hoje e consegui! As 14:05, exatamente, então vim escrever o comentário.

Muitos pontos, muitos pontos a comentar. Então vamos lá….

A narrativa de Beatriz. Cara…. Sem dúvida foi a parte que mais me angustiou na história. Eu sempre fico imaginando as cenas enquanto leio, mas na parte onde a família dela é morta fiquei “Não, nope, não quero pensar nisso! Chega!”. E quando Vitória narrou o dia em que Beatriz sai chorando pensei “Pronto, as mortes tem a ver com Beatriz, são por causa dela.” De início pensei que a Quental pudesse ter sido dona da família dela, na época que eram escravos e feito algo brutal a eles, mas foi ainda pior do que tinha imaginado. Mas achei muito bonitinho o depois de tudo isso para ela. Quando assumiu identidade masculina e conheceu Louison. Só essa parte já daria um romance legal (embora eu goste mais da versão que inclua os assassinatos e tudo mais XD ).

A história sobre a criação de uma estória é sempre engraçada. Há muita reflexão e pensamento lógico envolvido em “Lição de Anatomia”. Uma das mais fortes influências do que escrevo é Watchmen, um complexo e instigante mecanismo narrativo e literário, no qual cada fala, imagem ou detalhe, seja visual ou textual, contribui para o seu desenvolvimento. Queria que o romance dialogasse, ao menos em parte, com uma complexidade similar a que Moore empreende em sua obra e penso que a linha temporal “bagunçada”, que o leitor ou leitora vai montando aos poucos consegue fazer isso. Por outro lado, há sempre algumas agradáveis surpresas que fogem desse esforço intelectivo e racional e que, curiosamente, apenas o intensificam. Beatriz exemplifica essas felizes coincidências. Ela foi a personagem que pensei por último. Sua narrativa foi escrita em três dias, na reta final do envio do manuscrito à editora, e mesmo assim é a parte que mais me impacta pela força e por tudo o que ela traz ao romance: o cenário retrofuturista no qual força escrava humana foi substituída por trabalho robótico, a relação afetiva com Louison, o horror envolvendo a Camarilha da Dor, entre outras coisas, como a discussão sobre gênero, feminismo, preconceito e o encanto de se criar histórias. Quanto à estória dela com Louison, em algum momento ela será contada em detalhes, talvez no quinto e último volume da série, que terá os dois e Rita Baiana por protagonistas, entre outros.

A entrevista com Britto. Aí chegamos no capítulo da entrevista… Quando vi que estava tendo uma entrevista, minha ordem de pensamentos enquanto lia foram:

– Será que o entrevistador é o tal jornalista amigo do Isaías?

– Não…. Talvez seja o próprio Isaías já tramando algo com o Pathernon. (aí rolou alguma fala que não lembro bem agora)

– Ok… E SE for o Louison fazendo a entrevista e é por isso que não tem os nomes deles???

E era isso! Ficou bem legal a cena! Todo um ar de clímax e tal. E como assim não narrou o que o Britto viu pela luneta??? Ok, sei que o Louison não era realmente mau, mas ele também não é bom…. Isso deve formar uma imagem bem interessante. ( Em termos de RPG, ele seria Leal e Neutro, creio.) E o discurso final do Louison…. Quando vi o tamanho da fala dele pensei “Puta que pariu! Ele vai ficar um século falando quando quero ver logo o que acontece? Se fosse o Britto manda ele embora só para não ter que ficar escutando isso”.  Mas a fala dele foi legal! Toda a linha de raciocínio dele sobre o que é belo, feio, justo, os efeitos na arte e tal. Essa mesma linha explica vilões tão populares. (O fato de ninguém ligar para o Thor, e o Loki de Tom Hidleston ter um fandom tão grande. Ou o fato do Batman ser feito mais por bons vilões do que pelo heroísmo dele em si).

Que bom que gostaste e que o discurso interminável do Louison – sua “lição” – não te cansou. Apesar de complexo, ele é um dos textos mais fundamentais do romance. É justamente ele que quebra o maniqueísmo dos dois heróis: de um lado o investigador durão e do outro o assassino em série. Queria justamente partir dessa visão monocromática e chegar a uma área cinzenta que borrasse os limites entre o certo e o errado, entre o bem e o mal. Se a quinta parte narrada por Beatriz foi a última a ser escrita, a fala de Louison foi uma das primeiras. Escrevi-a ainda em 2010, quando transformei o conto do ano anterior – que virou o Interlúdio Dramático da versão final – numa noveleta que compreende muito das partes quatro e seis, muito antes dos heróis da literatura brasileira entrarem na história ou mesmo o elemento steampunk. E gosto de termos uma trilha sonora pra este discurso: a peça musical de Mahler, referência sonora que por sua vez alude a uma cena maravilhosa de A Ilha do Medo, de Martin Scorsese.

Final da história. Tudo foi resolvido de maneira satisfatória ao meu ver. Poderia pensar em finais diferentes, mas diferentes, não exatamente melhores. Compreendo que este é um livro, de uma série, como uma pequena parte de um universo enorme, mas… CARA COMO ASSIM??? E O RESTO??? Pensar que só tem mais um conto sobre o Bento me angustia, vendo que tem tantas coisas a mais da série. Espero que venham logo. É como… Assisti Mad Max com meu pai e ele ficou falando que tinha “pontas soltas”, que não pararam para explicar tudo. Eu defendi disso que isso era até bom, porque o mundo independia do protagonista. É um mundo, com mil sociedades diferentes, mil personagens e mil histórias. Você não precisa E NEM DEVE criar algo de interessante apenas se tiver a ver diretamente com o protagonista. Acho que isso deixa as coisas meio artificiais. Então fiquei surpresa com a Senhorinha aparecendo no bordel “do nada” ou as menções do que rolou com cada personagem depois, os mistérios mencionados e tudo mais. Isso faz o leitor querer mais livros da série.

Que bom escutar isso, Thinai. Sinto-me motivado a continuar investindo meu tempo e minha energia em Brasiliana Steampunk, único projeto artístico que prevejo nos próximos dez anos. Para atiçar tua curiosidade, listo abaixo alguns contos que virão à luz nos próximos meses, alguns em coletâneas e outros publicados no próprio site, como fizemos com “Bento Alves & O Assalto ao Templo Positivista (1896)”, conto que mencionaste e que serve de prólogo para o próximo romance: O Parthenon Místico. De Solfieri, teremos os contos “Solfieri de Azevedo & O Espectro do Casarão Sombrio (1877)” e “Solfieri de Azevedo & A Taverna dos Enforcados (1901)”, bem como a noveleta Orquídeas & Castiçais (1855), que contará a origem do imortal satanista. Em algum momento, pretendo reunir essas e outras estórias protagonizadas por Solfieri numa coletânea de horror que se chamará Contos de Taverna. De Vitória, teremos os contos “Vitória Acauã &A Maldição do Arroio Itaimbé (1900)” e “Vitória Acauã & os Súcubos do Inferno (1904)”. Há um spin-off de Lição de Anatomia, uma novela em duas partes intitulada Contos Mal Vistos & Retratos Mal Ditos (1909-1911). Pelas datas, é possível perceber que estou trabalhando com uma linha do tempo bem instigante. Sobre Senhorinha, posso adiantar que saberemos mais dela no quarto volume da série, que será dedicado ao Palacete dos Prazeres. Por fim, há também uma história em quadrinhos que se passará em 1906 e que fará parte de uma série dedicada às aventuras do Parthenon Místico. Esta primeira se intitulará “Um Encontro com a Morte na Mansão dos Encantos”.

O protagonista. E vamos a esse ponto…. Sinceramente achei o Isaías penas “Ok”. Na verdade não sei se da para dizer que ele é o protagonista mesmo. Ele é o cara que acompanha o desenrolar dos fatos como novidade, então o leitor passa a descobrir coisas junto a ele. Eu até entendo a existência de personagens assim (tipo Harry Potter descobrindo um mundo mágico e o mostrando ao leitor), mas em meio a tantos personagens interessantes, cheio de histórias, conhecimentos e afins, o Isaias pareceu quase um desperdício. Imagino que uma versão dele 10 anos depois de ter entrado para o Pathernon seria infinitamente melhor, mas…. “ok”…

Acho que nenhum herói de Lição de Anatomia recebeu tantas críticas quanto Isaías. Tens toda a razão: ele é nossa porta de acesso ao universo de Porto Alegre dos Amantes e seu estilo descritivo detalhado objetiva criar o cenário de forma vívida. Não teremos mais isso nos volumes seguintes, uma vez que já cumpri esse objetivo. Quanto ao seu desenvolvimento, ele será, ao lado de Vitória, o protagonista de A Goela do Diabo, título provisório do terceiro volume, e posso adiantar que haverá várias surpresas sobre ele. Em resumo, trata-se de um herói que crescerá muito e que substituirá a postura mais passiva vista até aqui por um heroísmo e por uma impetuosidade nada circunstanciais. Ao menos, é o que espero. De qualquer modo, sua crítica está anotada.

Solfieri. E de todos os personagens não trabalhados no livro, o Solfieri foi o que mais senti falta. Pelo pouco mostrado dele, digo que teria potencial para ser meu personagem favorito, mas acho injusto nomeá-lo assim, tendo pouco conhecimento a respeito. Leve em conta que meu livro favorito é O Vampiro Armand, de Anne Rice. Não sei se conhece, mas fala sobre um garoto que lá pelo século XIV, XV, é sequestrado, arrastado a um prostíbulo, quase morre e então é resgatado por um vampiro e depois transformado. E olha só??? Ele tinha cerca de 16 anos também (embora a versão do Antônio Bandeiras dele parece mais ter uns 30 =.= ). E eu estava quase imaginando o Solfieri já com cabelos compridos e acaju… Eu fiquei realmente muito, muito, muito curiosa sobre ele. Sobre o tal pacto com o demônio, o fato dele só sair a noite e tal. Fiquei imaginando se ele seria um vampiro ou não, mas ele se alimenta, bebe vinho e fuma, então não sei… Mas realmente queria saber.

Se eu conheço, Thinai ? Há tanto de Anne Rice na minha literatura quanto de Alan Moore. Nenhuma escritora teve um impacto tão grande sobre minha adolescência e vida adulta quanto ela. Os jogos de perspectiva que estou buscando desenvolver na série são remissão direta às Crônicas Vampirescas. Adorei que relacionaste o Solfieri com o Armand. Eu não tinha pensado nisso. Mas vou pensar a partir daqui. Quanto a vampiros, ainda não decidi se eles existem no universo de Brasiliana Steampunk. Penso que não. Mas de qualquer modo, fui convidado a escrever um conto para uma futura coletânea da Editora Estronho cuja temática será Vampiros Steampunks, sob organização do grande amigo e também escritor Bruno Matangrano. Este conto será protagonizado por Solfieri, então veremos o que vai acontecer. Como podes perceber, haverá muito deste misterioso e charmoso imortal pela frente.

Sergio e Bento. Eu li o Ateneu em… 2006, por causa do colégio e pouco me lembro do livro, além de mal tê-lo começado, olhar para o Sergio e pensar “Gay”. (opinião que compartilhava com uma colega de classe também). Histórias de meninos vivendo em colégios internos tendem a propiciar esse tipo de coisa/imaginação. Mas resumindo: melhor casal. Pelo menos não saem matando as pessoas XD. Agora é ler a história do Bento.

Como disse, eles serão, ao lado da jovem Vitória Acauã, os protagonistas do segundo volume da série. Basicamente, o plot envolve a chegada de Sergio Pompeu a Porto Alegre dos Amantes – depois de ler a carta escrita por Bento em “Bento Alves & O Assalto ao Templo Positivista” – e contatando o Parthenon Místico. O conflito desse romance estará no ataque da terrível Ordem Positivista gaúcha aos heróis depois dos eventos narrados no conto supracitado. Estou resumindo esse novo enredo à seguinte informação: Jorge Luis Borges encontra Doctor Who!

Bacamarte. Melhor vilão! Foi ele o primeiro a me prender ao livro como disse antes. 

Concordo inteiramente! E é engraçado o quanto ele deu pouco trabalho em termos de escrita. É quase como se nós, enquanto brasileiros, estivéssemos todos contaminados pela ironia de Machado de Assis. E foi bom, depois do impressionismo sentimental de Caminha, mergulhar na perfídia de Bacamarte, apesar dos horrores por ele perpetrados serem tão medonhos e ainda ocorrerem em muitos hospícios brasileiros, vide o pavoroso livro O Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, livro que li enquanto escrevia o romance.

A Camarilha da Dor. Me fizeram ter vontade de voltar a jogar os RPGs de Terror, tipo Vampiro a máscara, ao mesmo tempo em que embrulharam meu estômago.  E ainda sim, eu, em meu masoquismo literário, cheguei a desejar que houvesse mais umas 100 páginas no livro, só sobre relatos deles, como formaram o grupo, vítimas e a visão deles no momento da morte. Teria sido muito bom, e acabaria dando um ar mais sombrio ao livro. (aí viraria terror mesmo, além do gênero de fantasia steampunk)

Então… não sei se teremos mais da Camarilha, fora a participação ocasional de um ou outro personagem em contos futuros. Sei, por exemplo, que um deles será visto no segundo volume, que se passa em 1896. Trata-se de Henrique Pontes, um dos integrantes da Ordem Positivista. Do resto, também para mim eles são um terror absoluto, não sendo personagens que revisito com prazer. A primeira parte da noveleta Contos Mal Vistos & Retratos Mal Ditos é dedicada a eles e esclarecerá algumas coisas sobre a relação de Louison com suas “vítimas”.

Vitória. Não sei bem o que pensar dela, na verdade. Fiquei indiferente e devo permanecer assim até ler a história dela de fato. É uma boa personagem, gosto mais dela do que do Isaías mas definirei opiniões depois.

Vitória é uma esfinge, aos olhos dos outros e de si própria. Trata-se da personagem feminina mais forte do romance, exceto por Beatriz talvez, mas que está enfrentando o mais perigoso dos caminhos: o do auto-conhecimento. Ela sofreu muito desde criança e tem, por sua mediunidade, um conhecimento do mundo e do que há além dele que vem sempre carregado de melancolia e certo desespero. Por outro lado, trata-se de uma mulher apaixonada pela aventura e pela noite, mas que chegou a um beco sem saída psicológico, sendo que sua fuga no final de Lição de Anatomia revela isso. O que estou planejando pra ela nos volumes II e III de Brasiliana Steampunk, que se passam respectivamente antes e depois do primeiro livro, responderá muitas das perguntas sobre ela. Ao mesmo tempo, formulará outras, como se deve esperar de toda e qualquer esfinge: mais interrogações do que conclusões. Mas isso não é verdade no caso de cada um de nós também?

Sobre o Louison. Ele foi o que eu esperava que eu fosse. Nem herói, nem vilão, e tornou a historia interessante. Mais uma vez fiquei com a sensação de que era um personagem a ser mais explorado, incluindo o passado e as aventuras dele, que ele menciona, mas não conta. Numa escala, gostei dele mais do que Vitória XD.

Ele é meu Hannibal Lecter, obviamente. Mas mais do que isso. Louison é muito do que eu admiro, respeito, valorizo. Quisera eu ter a sua sobriedade e a elegância, sobretudo em momentos de conflito. Estou neste momento trabalhando em ideias para Os Anos de Aprendizado de Antoine Louison, novela que pretendo publicar na forma de uma noitário virtual ou algo assim. Esta compreenderá a infância do temível doutor, sua formação em Coimbra, sua relação com Solfieri de Azevedo e o primeiro contato com Dante D’Augustine, bem como a formação do Parthenon Místico. O título e a estória dessa novela referenciam o Wilhelm Meister de Goethe e o Vampiro Lestat de Anne Rice, este próprio uma releitura da obra do poeta germânico. Não teremos Louison fugindo de casa para virar um ator ou o jovem herói enfrentando uma alcateia de lobos, mas teremos outras aventuras que incluem exorcismos rituais e o confronto com uma pantera amazônica.

Então, como já havia comentados tantos outros pontos do livro, por hora é isso. Irei iniciar mais uma maratona de dias fora de casa, então só devo conseguir ler a parte do Bento lá por quarta-feira, mas assim que fizer, prometo outro comentários enorme a respeito também.

E eu, Thinai, vou ficar muito feliz em te responder.

Mais uma vez parabéns! O livro ficou realmente bom. Esse final de semana mesmo já devo me despedir dele para emprestá-lo a uma amiga (falei do livro no mini-grupo de steampunk do qual faço parte, então já viu, ne?! ).

Muito obrigado pelas tuas palavras. Foram atenciosas e carinhosas. Adorei o fato de teres de envolvido assim com os heróis e heroínas de Brasiliana Steampunk, uma vez que não é diferente por aqui. Adoro-os todos e por isso não tenho dúvidas sobre o quanto desejo conviver com eles nos próximos anos. Quanto à indicação, te agradeço. É do sucesso desse primeiro volume que também depende os planos doidos descritos acima.

Sendo assim, até breve! 

Até, querida amiga.

Thinai Gonçalves

Com carinho,

Enéias Tavares

20/04/2015 – Adapak dá sua opinião sobre Dr. Louison!

Adapak dá sua opinião sobre o Temível Dr. Louison! 
Enéias Tavares responde aos comentários de Diego Henrique sobre Brasiliana Steampunk.

DSC_1554Enéias Tavares e seu encontro com Adapak na Comic Con Experience 2014

Ele é escuro como a noite. Forte e destemido como poucos.
Ele está em fuga e cada dia vivo é uma conquista de coragem e fé.
Cada hora de sobrevivência é uma busca por respostas e justiça!

Quando li “O Espadachim de Carvão” pela primeira vez – sim, estou relendo-o agora, porque o livro é bom e porque estou escrevendo uma resenha sobre ele – fiquei fascinado por dois elementos do universo criado por Affonso Solano. Primeiro, por tratar-se de um mundo complexo, vívido e amedrontador. Uma Kurgala que vamos descobrindo, desvendando, enquanto nos aventuramos por seus rios imaginários, por seus penhascos íngremes e perigosos, assim como seu herói.

Segundo, porque Solano apresenta seu Adapak com vigor e energia, com desejos e dúvidas, numa construção de personagens que faz o leitor acompanhar sua jornada, e, muitas vezes, sofrer seus perigos, comemorar suas vitórias – poucas, diga-se de passagem –, e vivenciar suas descobertas, do mundo e de si próprio.

Assim, qual não foi minha surpresa ao chegar na Comic Com Experience, no dia 6 de dezembro de 2015, no estande da LeYa e da Casa da Palavra, um estande dominado pelo Trono de Martin, pela popularidade e simpatia de Solano e pela energia dos autores – sim, vários! – de Marmor, entre outros elementos. Mas além deles, o que encontrei foi um cosplay real e fascinante de Adapak, com a pele negra, com as vestes carcomidas de aventuras e temores, com as espadas feitas de ossos! O herói recebeu belo cosplay de Diego Henrique, que, como o protagonista de “Espadachim”, transpirava simpatia e energia.

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A capa do romance de Solano e o Adapak de Diego Henrique

No final do evento, como sempre acontece, trocamos livros e contatos. Mas como nem sempre acontece, uma das partes escreveu pra outra respondendo ao livro. O que segue abaixo é uma conversa virtual na qual vou responder a alguns dos comentários de Diego Henrique – vulgo Adapak – sobre “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison”, comentário postado no seu perfil no Facebook no qual ele responde a vários temas levantados por Affonso Solano, Diogo Braga e Roberto Estrada no podcast Matando Robos Gigantes 265.

Respondi seu comentário porque, como todo escritor, adoro bater papo sobre meu trabalho, mas também  porque as questões levantadas pelos amigos do Jovem Nerd e mencionadas por Diego dialogam com muitas das minhas reflexões nos últimos meses, tanto sobre o universo de Brasiliana Steampunk como também sobre a recepção do livro.

Por fim, porque temo a forma como Adapak reagiria caso não lhe pagasse delicadeza com delicadeza. O mundo de Kurgala é perigoso. Como o nosso. E o que levamos daqui e de lá, são os vínculos de afeto e amizade. Nada além disso.

Um abraço, Affonso, e obrigado pela sua criação. Um abraço, Diego, e obrigado pelo seu Adapak e pelas suas questões. Um abraço aos leitores, sempre. Sem vocês, não estaríamos aqui, nos divertindo como nos divertimos.

Enéias Tavares
Santa Maria das Longas Postagens, 20 de abril de 2015.

Sobre “A Lição De Anatomia Do Temível Dr. Louison”

Por Diego Henrique

* Na Comic Con Experience, enquanto estava me apresentando como Adapak (Espadachim de Carvão) na Editora LeYa, tive a oportunidade de conhecer Enéias Tavares. Muito simpático e atencioso, conversamos por um bom tempo. Ele me apresentou o universo de “Brasiliana Steampunk” e sua obra. Logo de cara curti sua proposta. Ontem terminei de ler o livro e agora posso afirmar sem sombra de dúvidas que é uma das melhores coisas que já li. Somente hoje vi uma postagem do MRG falando sobre o livro, o que me deixou muito feliz em ver uma obra tão fantástica sendo divulgada desta forma. Isto me incentivou a escrever este post, pois tive algumas percepções um pouco diferentes em relação aos Matadores, além de pontos que gostaria de abrir para discussão ou expor minha visão. Dividirei em tópicos e tentarei evitar spoilers o máximo possível.

Acrescento, Diego, que o podcast do MRG é bem divertido. Para mim, foi muito gostoso rir junto com as piadas dos supracitados matadores. E penso que o espaço da internet seja fantástico justamente por permitir um ambiente de descontração e leveza para discussões opinativas como essa.

* Primeiros Registros de Isaías Caminha. A principio foi citado que a história começa lenta, e depois é discutida a necessidade de adequação do leitor no universo, fazendo apresentação das adaptações do que já conhecemos do mundo real com o Steampunk. Mas ao contrário da opinião dada de forma geral, isto não me incomodou. Talvez por ter gostado do modelo de narrativa e da forma que tudo foi construído. Neste momento já passamos a entender onde estaremos imersos em termos de tecnologia e cultura, além do formato de registros que serão utilizados na obra inteira. Para mim, não houveram excessos e ou faltas. Com todas as explicações e descrições que são fornecidas no início, automaticamente passamos a desenhar cada aspecto dos ambientes cada vez que são apresentados, que nos leva ao próximo tópico.

Algumas pessoas têm comentado o “início lento” de “Lição de Anatomia”. Apesar de compreender a opinião, Diego, defendo a primeira parte como fundamental à ambientação do mundo e à apresentação dos principais personagens e cenários. Ademais, acho que a linguagem um tanto decadentista de Caminha –inspirada pelo romance de Lima Barreto – auxilia o leitor a adentrar num mundo que seria exótico, sinestésico, intenso. Penso o romance também como uma pequena máquina do tempo literária e esse início, ao obrigar o leitor/leitora a pisar no freio da leitura e a ligar o botão da atenção, auxilia a produzir esse efeito. Que bom que gostaste deste início e que percebeste a estratégia narrativa presente nele.

* Falta de Elementos Steampunk. Discordo quando é citado a ausência de elementos Steampunk. De fato não é mencionado com frequência as sensações do ambiente, os objetos com os quais se interage, as vestimentas, etc. Porém, considerando os relatos iniciais e o formato em que ela é contada, já passamos a entender onde estamos e o que existe. E lembrando que não existe um narrador (mas sim cartas, documentos e gravações), seria muito gratuito ficar mencionando os itens dispostos ao redor apenas para ambientalizar, visto que já está subentendido o que há em cada local e situação. Um exemplo disso é como qualquer e-mail que se envia para alguém. Focamos no assunto principal, sem dar importância para coisas secundarias. Celular hoje em dia é algo completamente normal; há duas décadas atrás, nem tanto. Se fosse feito um relato deste período, certamente este objeto incomum receberia algum destaque especial.

Esse elemento também decorreu de uma escolha narrativa. Acho que o romance tem um tamanho adequado, uma vez que também não queria produzir – ao menos não por enquanto – um volume de mais de quinhentas páginas. No caso do detalhamento da tecnologia, acho que ele existe quando primordial à história, como os zepelins iniciais ou os secretários robóticos ou o surgimento dos autômatos em substituição do trabalho escravo ou mesmo a “surpresa tecnológica” envolvida na fuga de Louison. Nos próximos romances da série, pretendo aprofundar alguns elementos desta tecnologia, mas nunca esquecendo da dinamicidade da história, o que considero fundamental. Não gosto quando narradores de ficção científica param a narrativa para nos dar aula sobre a tecnologia empregada. Prefiro muito mais aqueles que nos suprem com informações mínimas deixando-nos à tarefa de complementar imaginariamente os detalhes que darão cor à ambientação.

* Natural x Normal x Moral x Comum. Certo dia, tive uma longa discussão com um amigo em relação aos conceitos de Natural (manifestações instintivas), Normal (a forma que “deveria” ser), Moral (o que é “certo” ou “errado”) e Comum (como em um senso geral algo é encarado). Apesar de muitas vezes se apresentarem como coisas parecidas, são conceitos completamente diferentes. Entendendo o fundamento de cada uma, passamos a separar o Compreensível do Admissível. Baseado nisto, principalmente por estarmos falando de outra época (independente dos aspectos fantásticos Steampunk, já que a essência da cultura permanece), algumas situações apresentadas foram absorvidas por mim de forma curiosa. Com o tempo me fizeram refletir sobre como e porque encaro cada uma a sua forma e a visão do personagem em relação ao fato. Questões sobre o racismo, o “amor invertido” de Sergio e Bento, o palacete dos prazeres, visão de mundo de Simão Bacamarte, a lealdade de Pedro Cândido, a razão das ações de Dr. Louison, até mesmo as ações dos membros da Camarilha, entre outras coisas, me chamaram atenção no romance de Enéias. Junto a isso, a percepção de não-binaridade em atos dos mais simples aos mais hediondos em axiomas diversos me fizeram pensar sobre alguns valores e o porquê deles. Algumas vezes entrei em paradoxo. Mais pra frente, ter sido colocado em cheque entre o que é Justo e o que é Moral foi algo genial.

Aqui, Diego, tu tocas em diversos pontos complexos que precisaria de páginas e páginas para discutirmos apropriadamente. Quem sabe em outro contexto? Fica o convite. Mas gostaria apenas de citar dois. Quanto à “não-binaridade” ou o evitar os “estereótipos”, sejam eles de gênero, ou de sexualidade, ou de etnia, ou de cultura, fui buscar esses elementos na própria literatura brasileira. Ora, “O Ateneu”, de Raul Pompeia, e “O Cortiço”, de Aluízio de Azevedo, de onde retirei personagens como Bento e Sergio e Rita Baiana e Pombinha, por exemplo, apresentam uma rica paleta de possibilidades, não apenas sexuais, como humanas, e por isso são grandes obras, obras que resistem ao tempo e às mudanças sociais. Acho que a literatura deve ampliar nossa percepção do mundo, não enquadrá-la ou limitá-la. Espero que Brasiliana Steampunk consiga também fazer isso. A relação de Bento e Sergio, por exemplo, que foi secundária em “Lição de Anatomia” ganhará destaque no segundo volume da série, bem como o antigo romance de Vitória e Solfieri. Quanto à diferença entre “justiça” e “moralidade”, fico feliz que a última versão do romance tenha mantido essa discussão. Ela foi uma das primeiras a entrar na história original, quando ainda não havia o elemento steampunk ou mesmo os heróis da literatura brasileira. Inicialmente, tratava-se apenas de Louison e Cândido discutindo essas questões e um matando o outro no final. Felizmente, essa versão de “Lição de Anatomia” ficou na gaveta. A versão final é bem mais interessante, justamente por manter a ambiguidade e por deixar ao leitor a resposta final à questão.

* Capa x Conteúdo. De fato, a capa do livro, apesar de uma arte sensacional, não traduz bem seu conteúdo. Esta não é uma história de aventura. Ao observá-la, uma pessoa desavisada pode esperar algo como um “Wild Wild West”, sendo que o Steampunk aqui é a ambientação como um todo, e não o modelo de história que geralmente estamos acostumados a ver. Porém, dado o formato de “localização” de época, interpreto como uma brincadeira bem humorada, assim como o título extenso. Enxergo isto como aquelas capas de jogos de Atari ou Snes, onde uma cena épica é inserida apenas por questões comerciais ou por tentar injetar na mente da pessoa como deve ser traduzido aquilo que será consumido. Isto não me incomodou. Curti muito da forma que é, mas entendo quando dizem que não é a capa mais adequada. (Entendo, mas não concordo)

A capa divide opiniões com respeito ao que ela comunica e o que o romance apresenta. Apesar de compreender, discordo em tese por várias razões. Primeiro, é inegável que a capa é super-heróica e esta foi uma escolha consciente de Affonso Solano ao contatar o grande Rodney Buchemi para produzi-la. O romance brinca com elementos de época, satiriza uma linguagem de “ficção de polpa” e também muitos elementos da nossa literatura. Pensamos que a capa dialoga com isso, produzindo uma ironia visual que, além de bela, marca uma identidade steampunk, divertida, vibrante, elementos que, espero, também fazem parte de Brasiliana Steampunk. Muitos leitores têm comprado o livro pela capa sim! Muitos me disseram isso em eventos e também por mensagens. Todavia, quando lêem o romance, vêem como bela surpresa que um produto que “prometia” aventura e diversão, apresenta isso e muito mais. Há também a questão – muitas leitoras têm me dito isso – das figuras femininas da capa, que poderiam dar uma idéia distorcida sobre o tipo de representação do feminino presente no romance. Aqui também, gosto de pensar mais na ironia. Brasiliana Steampunk é sobre mulheres fortes e determinadas. Não há meninas em perigo aqui. E acho que capa também comunica isso, o que é uma grande qualidade, penso. Se quiserem saber mais sobre o processo de construção da capa, indico a entrada do Noitário do dia 15 de janeiro de 2015.

* Literatura Clássica. Uma das coisas que mais gostei do livro foi a forma que ele despertou meu interesse em conhecer os clássicos da literatura nacional. Sempre fui do tipo de aluno que começava a ler o livro, não aguentava e baixava o resumo pra passar na prova. Hoje entendo o valor literário das grandes obras. Mas da forma que me foram apresentadas (além da minha maturidade naquele momento) apenas desmotivava toda e qualquer vontade de as conhecer. Com a brincadeira feita por Enéias, de forma muito divertida descobrimos quão profundo pode ser cada obra, e com isso naturalmente nos induz a ir atrás de suas origens. (Depois de refletir sobre isso, talvez eu dê uma segunda chance para Clarice Lispector e tente ver com outros olhos “A Hora Da Estrela” – um trauma de infância!!!)

Então, Diego, ainda tenho problemas com Clarice e outros tantos livros. E concordo inteiramente contigo: não devemos culpar as obras ou os autores por experiências que tivemos na infância ou na adolescência que mais nos afastaram delas do que nos aproximaram. E acho que sim, que temos o dever de dar uma “segunda chance” a obras para as quais não estávamos preparados ainda. Eu tive duas experiências ruins, semelhantes às que tu descreves, na adolescência: Uma com “O Cortiço” e outra com “O Ateneu”. O primeiro é hoje meu romance brasileiro favorito, por sua energia, por sua riqueza e por seu dinamismo narrativo e riqueza de ambientação e caracterização. O segundo, confesso, admiro muito mas ainda tenho que fazer um grande esforço para ler e apreciar como ocorre com outras obras. E os processos de leitura são assim mesmos. Não existe um livro certo e sim um momento certo para cada livro. Espero muito que Brasiliana Steampunk desafie alguns dos leitores a superarem seus preconceitos com as obras da nossa literatura. Escrever essa série ajudou a superar muitos dos meus.

* Expansão do Universo. Quando terminei de ler quis saber mais sobre o universo de Brasiliana Steampunk. Existem religiões africanas? Como era a tecnologia na época da colonização? Os navios já voavam quando chegaram na Ilha de Vera Cruz? Ou será que passaram a voar só depois de 1906 com os protótipos de Santos Dummond? (Isto é, se ele existir neste universo). Considerando a existência de misticismo e tecnologia retrofuturista, será que em algum momento da História um cientista aficionado por alquimia decidiu tentar dar vida a um ser humano? Muitos destes questionamentos não influenciam no enredo, mas quando uma obra é boa de verdade é muito divertido desvendar estes tipos de detalhes de seu universo – principalmente os que são mencionados mesmo de forma superficial, como a existência do Crucificado.

Adorei suas considerações, Diego. Mesmo! Sim, penso na série Brasiliana Steampunk como cinco romances mais um Guia de Referências, entre contos e outras surpresas que virão, como o Tarot e talvez alguns jogos analógicos ou de tabuleiro. Sobre o Guia, que planejo escrever ou finalizar entre a publicação do terceiro e do quarto romance, ele será escrito em parceria com outros escritores e ilustradores e apresentará uma série de complementos ao universo de Brasiliana Steampunk. Penso numa coletânea de textos, cartas, mapas, linhas de tempo, fotos, imagens, reportagens de jornal, recados psicografados, anúncios, diagramas, poemetos, um baralho de tarô, entre outras coisas esquisitas, num formato livro de RPG que “explica” ou “aprofunda” o cenário. O que conectaria essas diversas textualidades seria a chegada de um visitante às ruínas do Parthenon, entre as décadas de 30 e 40, e a necessidade de recolher todos esses materiais. Uma ideia que me vem agora é brincar com aqueles livros antigos de RPG que fazem uma pergunta e dependendo da resposta/escolha do leitor, ele vai para a página 34 ou 57, por exemplo. Mas veremos o que virá pela frente e até que ponto os leitores estarão interessados. Para mim, este é o principal critério.

Concluindo, estou muito ansioso para ver quais novas surpresas o universo de Brasiliana Steampunk nos reserva. Sem dúvida, este é um dos meus livros preferidos. Recomendo-o a todos.

Muito obrigado, Diego. Suas considerações me motivam a continuar investindo em Brasiliana Steampunk. Para mim, tem sido uma grande diversão. Espero que continuemos todos nos divertindo tanto com esse universo que tem tanto de nós e que ao mesmo tempo energiza a nossa imaginação. Um grande abraço.

15/01/2015 – A criação de Lição de Anatomia – Parte IV

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A Capa de “Lição de Anatomia”

Quando o anúncio de que Brasiliana Steampunk havia vencido o concurso da Fantasy/Casa da Palavra foi feito, no dia 16 de junho de 2014 – lembro do dia pois estava comemorando o Bloomsday com alguns amigos, o que significa beber, conversar alto e ler poesia no microfone no bar Ponto de Cinema, em Santa Maria – meu grande entusiasmo foi acrescido de imensa apreensão, findando apenas no dia 31 de agosto, quando o livro foi lançado na Bienal do Livro em São Paulo.

Todos sabemos que um livro – por mais que se possa falar de suas ideias, de suas abstrações conceituais, das motivações psicológicas que levaram à sua escrita – é também um produto e como qualquer produto pode ou não chamar a atenção do público. E neste quesito, tanto a capa quanto a diagramação são fatores essenciais para se conseguir não apenas chamar a atenção para o produto em si como também para o seu conteúdo.

Nos primeiros diálogos com Affonso Solano sobre a capa, ele defendeu o nome de Rodney Buchemi, artista mineiro que tem em seu currículo trabalhos tanto para Marvel quanto para a DC Comics. Do ponto de vista de Solano, a escolha de um artista com experiência em quadrinhos daria ao projeto gráfico de Brasiliana Steampunk uma dimensão mais “super-heróica”, um elemento que na sua opinião seria fundamental ao sucesso do livro.

Até hoje, quando me perguntam sobre o gênero de “Lição de Anatomia”, fico na dúvida sobre a resposta que devo dar, uma vez que o livro é muita coisa: é uma história de ficção científica steampunk; é também uma história de suspense e horror psicológico – em especial se pensarmos nos crimes de Louison e na Camarilha da Dor; mas também apresenta um universo no qual os heróis da literatura brasileira formam essa “liga extraordinária” disfarçada de “sociedade secreta”. Em função disso, minha principal dúvida estava em como comunicar esses três elementos numa capa?

Do alto de minha inexperiência, pensava que seria necessária escolher apenas um desses elementos e ignorar os outros dois, o que levaria o livro a correr o risco de atrair apenas um tipo de público. E aqui, novamente, entram os talentos de Solano e Buchemi.

Em trocas de e-mails com Solano, sugeri alguns personagens e enviei longas descrições dos heróis que pensava como fundamentais à cara do livro. É claro que queria todo o elenco, o que significa entulhar a capa com mais de vinte personagens. Pacientemente Solano explicou-me que usaríamos apenas quatro, dois masculinos e dois femininos, além de um elemento que comunicasse a dimensão retrofuturista do cenário. Depois de lamentar um pouco, acordamos que esses seriam Louison como figura ameaçadora central, Vitória Acauã, Rita Baiana ou Beatriz e Pedro Britto Cândido.

Deste primeiro diálogo, Buchemi pensou em cinco propostas, sendo que cada uma delas privilegiava aspectos diferentes do universo de Brasiliana Steampunk e seus moradores.

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Eu particularmente gostei de todas elas, apesar de ter uma predileção pela primeira proposta e a última. A primeira tinha uma perspectiva que indicava perigo e urgência, além robôs e zepelins – e claro que teria adorado uma capa com um zepelim! Apenas alertei para a posição da personagem feminina que estava abraçada a Pedro Cândido na última opção. Escrevi a Solano que a capa estava bonita, mas que não havia “mocinhas em perigo” em Brasiliana Steampunk; quanto muito, “mocinhos em perigo”.

Mais uma vez, Solano e Buchemi compreenderam e respeitaram meu pedido, com sua delicadeza e profissionalismo costumeiros.  A partir destes últimos ajustes, Buchemi chegou à última proposta de Layout no exato momento em que o prazo estava esgotando. Na versão final, os zepelins foram substituídos pelos robóticos e Beatriz foi substituída por Rita Baiana.

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Eu tinha ainda duas considerações. Achava o bigode de Louison bem estranho, em especial ao pensar naquele ideal de vilão mais charmoso do que ameaçador e as cores muito vivas, um pouco distantes daquilo que os tons mais chapados e cobreados do Steampunk mereceriam.

Solano explicou-me que o Louison da capa correspondia não ao “Louison” que eu tinha em minha cabeça ou mesmo ao “Louison” mais charmoso e refinado presente no texto e sim ao “Estripador da Perdição”, ao “Mefistófeles Tupiniquim”, ao “Terrível Diabo”, ao “Alcaide Infernal”, entre outras nomenclaturas, que os jornais da capital deram ao doutor quando ele foi preso. Ademais, tal “interpretação” correspondia também à leitura que Buchemi havia feito e que o divertido do processo era justamente isso: ver meus personagens ganharem vida a partir de outras interpretações. Quanto às cores, disse-me ele que deveria também esperar, pois agora entraria em cena Rico Bacellar, designer que seria o responsável pela capa e pelo projeto gráfico de “Lição de Anatomia”.

Qual não foi minha surpresa quando, num final de semana de férias, recebo a versão final da capa do primeiro volume de Brasiliana Steampunk. As cores e o “desgaste” steampunk estavam lá. A natureza pulp da história se fazia presente na fonte, no título e também na maravilhosa logomarca criada por Bacellar para a série, em forma de um relógio que não apenas me lembravam as engrenagens do universo steam como também o inesquecível relógio de Watchmen, de Alan Moore – uma das minhas principais fontes de inspirações sempre.

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O que aprendi com a feitura do livro – do ponto em que o resultado do concurso foi anunciado até a sua publicação – foi o quanto se ganha com um trabalho afinado e profissional, não apenas dos três artistas citados – Solano, Buchemi e Bacellar – como também de toda a equipe da Casa da Palavra/LeYa.

Nos eventos que participei para a divulgação e lançamento do romance – entre eles a própria Bienal bem como a Comic Con Experience, também em São Paulo – foram diversos os comentários elogiosos à arte e ao quanto Brasiliana Steampunk é um “livro que vende pela capa”. De minha parte, além da óbvia alegria de ver meu livro tão bem apresentado, fica a expectativa de que o seu conteúdo faça também jus a todos esses elogios.

Um abraço a todos vocês

Enéias Tavares

07/01/2014 – A criação de Lição de Anatomia – Parte III

 

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A Estrutura do Romance e a Linguagem dos Heróis da Literatura Brasileira

Tendo estabelecido a ideia principal e os elementos que desejava para a narrativa, todos mais ou menos presentes no “Argumento”, entre dezembro de 2013 e abril de 2014 mergulhei na escrita do texto que se tornaria “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison”.

Deixei o que tinha pronto de lado, torcendo para que, talvez, em algum momento eu pudesse utilizar alguns dos textos que produzira anos, fosse o conto de Louison ou a noveleta que tratava do diálogo entre o herói e o investigador.

Para estipular as principais metas, parti do princípio de que as duas primeiras partes – Jornalistas & Monstros e Alienados & Alienistas – seriam escritas pelos dois personagens que haviam guiado minhas ideias até então: Isaías Caminha e Simão Bacamarte.

Caminha seria nosso guia ao entrar no universo de Brasiliana Steampunk, uma vez que é um estrangeiro e um narrador detalhista e metódico no modo como relata suas experiências e o mundo ao seu redor. Por outro, lado, Simão seria mais fragmentado e rápido, mais interessado na loucura dos eventos do que na descrição de cômodos ou cenários.

A terceira parte – Aventureiros Místicos & Cafetinas de Luxo – seria a mais desafiadora, uma vez que o escopo de cartas, diários, recibos e mensagens eram muito maior. Se tive imenso trabalho em detalhar a linguagem de Caminha e Bacamarte nas primeiras partes, nela o esforço seria criar uma variedade tonal que perpassasse a linguagem administrativa de Léonie, o discurso sedutor de Pombinha, a fala mais oral de Pombinha, os diálogos amorosos de Sergio e Bento, os conselhos rápidos de Benignus, as dúvidas existências de Vitória e o retorno de Caminha, que agora penetrava nos mistérios do Parthenon Místico.

Acho que de todas, a terceira parte foi a que mais recebeu revisões. Sob um certo aspecto, ainda trata-se da parte da narrativa que menos me satisfez, apesar de ter apreciado muitos dos seus resultados. Penso que os próximos romances servirão também para dar mais espaços a personagens que, apesar de coadjuvantes em “Lição de Anatomia”, mereceriam maior destaque. E aqui falo tanto dos aventureiros do Parthenon Místico quanto das damas do Palacete dos Prazeres, personagens que respectivamente serão os protagonistas do segundo e do quarto volume da série.

(Isso, claro, que se os leitores estiverem interessados neles e a editora concordar em continuar investindo nos planos absurdos e delirantes deste escritor principiante.)

Quanto à segunda metade do romance, ela foi uma consequência lógica do que o enredo pedia. Se as primeiras três partes fizeram muitas perguntas, as últimas três iriam respondê-las. Senão todas, as principais. Uma das partes seria narrada por Pedro Britto Cândido. Outra por Beatriz. E a última por Louison.

Aqui, retornei, em algumas passagens ao que já havia escrito anos antes. Assim, na versão final do romance, o conto de 2009 virou o “Interlúdio Dramático” e a noveleta de 2010 deu origem a algumas passagens das partes quatro e seis – Investigadores & Investigados e Assassinos Sórdidos & Heróis Improváveis –, narradas justamente pelo investigador e pelo assassino procurado.

A quinta parte – Homens Escravos & Mulheres Livres – é inédita e foi escrita num intervalo de dois dias. Curiosamente, considero-o uma das passagens mais intensas do romance. Nela, pude tratar não apenas de escravidão, violência, paixão e vingança, como de problemas que dizem respeito à opressão do feminino no século 19. Para fechar, teria novamente Caminha escrevendo a Conclusão do drama. Aquele que nos introduzira aos moradores de Porto Alegre dos Amantes seria também aquele que nos ajudaria a dar adeus àquele mundo e aos seus exóticos habitantes.

Do ponto de vista da narrativa, agradaram-me as várias vozes que cada um dos personagens assumiu. Acreditava que se o romance não fosse entediante de se escrever, não seria entediante de se ler. Apostei nessa variedade pensando que para o leitor seria um exercício interessante se adaptar a essas diferentes perspectivas, muitas delas até mesmo antagônicas ou paradoxais. É interessante contrastar, por exemplo, a visão que Bacamarte tem de si próprio com o modo como todos os outros heróis o veem: como o lunático que, tragicamente, é o responsável pela casa de loucos.

Outro desafio interessante, a meu ver, estarei na construção temporal do romance. A primeira parte se passaria em quatro dias, a segunda em quatro anos e a terceira em quase uma década, deixando às últimas três partes a resolução do mistério ocorrendo em poucas horas, apesar de remeter a acontecimentos de anos. Tal construção me animou muito, pois pensei que se fosse um problema dos infernos montar um tal quebra-cabeça o leitor poderia ter uma experiência similar enquanto acompanhasse a narrativa.

Para dar conta desse problema em termos práticos, a primeira coisa que fiz foi colar na parede, ao lado do computador, uma imensa folha A2 na qual coloquei todos esses eventos na ordem cronológica tradicional. Até semanas antes da publicação de “Lição de Anatomia”, estava eu revisando essa cronologia louca, morrendo de medo de ter cometido algum equívoco ou erro.

E obviamente, havia também o medo de que nada daquilo funcionasse para o leitor.

Felizmente, parece que tais experimentações não os têm afugentado.

Desde o início, Brasiliana Steampunk foi uma grande aposta de todos os envolvidos. De minha parte, uma aposta na narrativa e na forma de se contar uma história de modo pouco convencional. Ademais, uma aposta na pertinência e na importância dos grandes heróis da literatura brasileira na contemporaneidade. Ademais, uma aposta da Casa da Palavra/LeYa não apenas em escolhê-la como obra vencedora do concurso “A Fantasy quer o seu mundo” como também na própria publicação. Por fim, uma aposta dos leitores que tem dedicado horas de seu tempo à sua leitura. Espero que para todos os envolvidos, o romance compense o esforço. Para mim, tem compensado.

E muito.

O restante da história da criação do primeiro volume de Brasiliana Steampunk será narrado na próxima postagem, que tratará da confecção da capa e da diagramação de “Lição de Anatomia”.

 

27/12/2014 – A criação de Lição de Anatomia – Parte II

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O Primeiro Argumento

Antes de mergulhar na escrita do primeiro volume de Brasiliana Steampunk – na verdade, muito antes de saber que a série seria de fato uma série – pensei que seria fundamental detalhar a minha proposta num argumento que poderia ilustrar a possíveis editores quais eram os meus planos. O que segue, é o primeiro “brainstorm” do que viria a ser “Lição de Anatomia”. Neste argumento, havia ainda uma mescla entre personagens históricos e literários e um centralidade maior de heróis machadianos, que por fim foram riscados da versão final.

Além disso, não tinha ainda ideia alguma de como resolveria os grandes problemas narrativos que havia proposto ou mesmo como usaria essas diferentes vozes literárias para contar a história de Louison e Cia. Por outro lado, a escrita do argumento revelava uma segurança maior com o universo que estava começando a surgir. Neste interim, enquanto pensava em aprofundar o argumento, dedicava horas e horas à leitura dos clássicos que iria conspurcar/homenagear, anotando ideias, construções frasais, padrões vocabulares, entre outras marcas textuais que seriam parodiadas por suas contrapartes retrofuturistas.

“O enredo se passa entre os dias 10 e 24 de Julho de 1911, data que marca o início do transporte de passageiros do futurístico Zeppelin Brazil D658 entre as capitais do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Nesta, vive o médico, pintor e ensaísta Antoine Frederico Louison, figura controversa e escandalosa que foi presa pelo Investigador Pedro Britto Cândido sob suspeita de crimes que desafiam a lógica, a moralidade e a metafísica. Enquanto o temível doutor está encarcerado, seu sobrado é interditado e investigado. O casarão fica próximo ao verdejante e pantanoso Parque da Redenção, mais conhecido nos arredores como Bueiro da Perdição. No escritório de Louison, as grosseiras e devotas forças policiais apreendem escritos, diários e utensílios de rara precisão e misteriosa procedência. Em seu julgamento, para o horror dos presentes e júbilo da imprensa, os corvos jurídico-publicitários apresentam indícios de que Louison seduzira, alimentara, entorpecera e matara no mínimo sete vítimas, usando-as como modelos de estudos anatômicos. Após sua condenação, o médico é enviado ao Asilo São Pedro para Criminosos Lunáticos, Esquizofrênicos Seriais e Histéricas Incontroláveis, sob a vigilância do centenário carrasco Simão Bacamarte, instalado na capital gaúcha desde o escândalo do hospício-bordel Casa Verde. Inexplicavelmente, depois de três dias e quatro noites, Louison escapa, desaparecendo no ar noturno como um fantasma de folhetim. Para a inquietação das Tropas e prazer dos pasquins de plantão, deixa em sua cela um manuscrito cabalístico ilegível, vestes dobradas sobre o leito e uma luneta mágica que, dependendo do ajuste de seu dispositivo mecânico, mostra diferentes facetas de objetos, seres e lugares.

O romance, dividido em cinco movimentos operísticos, apresenta vários narradores, como Isaias Caminha, Simão Bacamarte, Sergio Pompeu, Cândido e o próprio Louison. Ademais, tal relato reproduz, pela primeira vez ao público, páginas do relatório policial que levou à captura, parágrafos dos autos do processo, que incluem dramáticos testemunhos de vizinhos que nada viram mas que de tudo sempre suspeitaram, além de trinta páginas escandalosas do diário pessoal do Doutor – registro intragável, não recomendado a leitores sensíveis e cardíacos, que confirma as suspeitas sobre os atos imorais e pérfidos que o médico praticou contra figuras notórias da sociedade porto-alegrense do período, figuras que compunham a seleta camarilha estética que o próprio facínora integrava. No último movimento do romance, Cândido descobrirá a verdade sobre a fuga do celerado, Louison garantirá a sua partida em direção ao Rio de Janeiro a bordo do Zeppelin em formidável companhia e o leitor será surpreendido com a verdadeira identidade de um dos heróis desta tenebrosa narrativa.

Tal admirável experimento romanesco apresenta ainda como coadjuvantes os investigadores ocultistas Sergio Pompeu e Beatriz Amarante, ambos integrantes da sociedade secreta Partenon Místico, o dândi africano Joãozinho Caixa Alta, o padre cientista Marcel de Souza, especialista em transmissão de voz e em pictogramas photo-temporais, o jornalista, agitador e anarquista Isaías Caminha, a enigmática médium indígena Vitória Acauã, o reencarnado José Maria, devoto da Igreja do Diabo e íntimo do Bruxo do Cosme Velho e um espírito chamado Braz, o jovem aventureiro Bento Alves, as cafetinas de luxo Rita Baiana, Pombinha e Léonie, donas do Palacete dos Deleites, o alquimista e imortal Solfieri de Azevedo e a libertina Madame de Quendal, entre outras personalidades de inegável requinte, renome e prestígio, todas historicamente ficcionais.

Este primeiro volume, intitulado Lição de Anatomia, configura um investimento folhetinesco que une os gêneros policial e horror à estética steampunk. Trata-se de um mundo no qual personagens literárias mesclam-se a personagens autorais e históricas, no qual um herói de Álvares de Azevedo pode garantir sua imortalidade e homenagear seu criador assumindo seu sobrenome, no qual poetas e figuras históricas dividem a cena com um hipotético Sergio Pompeu e no qual um dândi negro pode visitar o cabaré de Rita Baiana, self-made woman de renome mundial. Nesse universo, onde a linha divisória entre o real e o ficcional é borrada pelo vapor futurista, Zeppelins cortam o céu esfumaçado de uma decadente Porto Alegre art nouveau, ruas são iluminadas por luz photoelétrica, bondes mecanizados carregam passageiros misteriosos, assassinos anônimos visitam confeitarias espíritas, cabalistas transmutam-se em larápios magistas e líderes político-religiosos se revelam malfeitores, todos entrelaçados no encontro singular entre Louison, Madame de Quendal e Brito Cândido. Trata-se de um mundo de lampiões de zinco e prata, requintadas carteiras metálicas de rapé, fumos e incensos orientais, cortinas vermelhas e divãs acetinados, floretes afiados e bastões de madrepérola, jogatina legalizada e licores proibidos, prazeres mórbidos e ideais nada utópicos.”

No final de 2013, reuni coragem e enviei o argumento a um editor paulistano, à época responsável por uma editora de médio porte e reconhecida pelo investimento nos gêneros de ficção científica, fantasia e horror. A resposta foi promissora. Informou-me ele que o argumento era bom, mas que nada poderia ser feito sem antes ver o manuscrito. Foi com esse incentivo em mente que continuei a escrita do primeiro romance de Brasiliana Steampunk.

 

10/12/2014 – A criação de Lição de Anatomia – Parte I

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Primeiros Esboços

Hoje, narrarei ao intrépido leitor ou à ousada leitora como cheguei à versão publicada de “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison”. Para tanto, dividirei essa postagem em quatro partes, que detalham desde os primeiros insights, ocorridos em 2009, até a versão final publicada pela Casa da Palvra/LeYa em agosto deste ano.

Em 2009, mudei-me para Porto Alegre e empreendi um sonho antigo: me inscrever no processo seletivo da Oficina de Escrita Criativa da PUC-RS, curso anual ministrado pelo escritor e professor Luis Antonio de Assis Brasil. Tal oficina, a mais antiga do Brasil, já batendo na marca de trinta anos de existência, era ministrada em dois semestres, num ritmo fantástico de quinze encontros semanais.

Tratava-se de uma oportunidade bem especial de pertencer a uma turma de aspirantes a escritor na presença de um autor já consagrado e com uma grande bagagem cultural e literária. Além disso, uma oportunidade de obter um retorno crítico por parte de pessoas que não eram necessariamente amigos ou parentes.

Na época, o processo seletivo para a oficina exigia a entrega de três contos nos quais os autores deveriam minimamente evidenciar seu talento espontâneo ou, quando não, sua mínima percepção da técnica narrativa. Um dos contos que entreguei chamava-se “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison”, peça narrativa em primeira pessoa na qual um assassino em série detalhava a sedução, o assassinato e a disposição das partes do corpo de sua vítima.

No ano seguinte à oficina, cogitei transformar aquele conto numa pequena noveleta em quatro partes que possuía o mesmo título. Porém agora, havia acrescentado outro personagem: um investigador grosseirão e desbocado que contrastaria com o assassino requintado e articulado. A noveleta se passava no final da década de 1940 e tinha por cenário Belo Horizonte. Em sua estrutura, havia um entrevistador cuja identidade permanecia em mistério até o dramático clímax e que conversava com o detetive Cândido a respeito da prisão e da escapada do assassino. Ao término, Louison revelava-se o entrevistador – que após a escapada havia se escondido no lugar menos suspeito: a casa do homem que efetuou sua prisão – e assassinava Cândido com uma lâmina cravada em seu coração. Ao deixar a casa na qual vivia o pobre policial, levava consigo o negro gato do seu arqui-inimigo.

Aquela noveleta de horror era sobre um vilão fascinante e atraente, bem mais simpático que o biltre e desgastado investigador. Obviamente, na criação de Louison eu estava buscando a imagem do “belo demoníaco”, termo literário usado para denominar os charmosos vilões shakespearianos e o Satã de Milton. Em nossos dias, seu correlativo é o vampiro sedutor (seja ele o Drácula de Coppola ou o Lestat de Anne Rice) ou a miríade de assassinos em série fascinantes que simplesmente invadiram a literatura, os quadrinhos e o cinema nas últimas décadas (e aqui vamos desde Dexter até o pai dos assassinos em série classudos, um certo doutor chamado Hannibal the Canibal).

A novela ganhara um subtítulo, “Da Arte como Amoralidade”, numa tentativa minha de produzir igualmente uma história de ficção e um tratado de estética. Como podem imaginar, a pretensão do imberbe escritor soçobrou e o resultado ficou aquém do esperado. E quando nem meus amigos mais queridos disseram que haviam gostado, fiz o que todo profissional inteligente faz quando recebe uma crítica: engaveta o erro ou parte para um novo projeto.

Eu optei pela segunda opção, ignorando o conto e a novela até setembro de 2013, quando decidi retomar a antiga ideia de Louison enfrentando o olhar investigativo de Pedro Britto Cândido. Porém, quando retomei à história, ela parecia-me mais e mais fraca, faltando a ela uma perspectiva adequada e uma mínima estrutura narrativa. Foi quando duas ideias e mudaram a cara do projeto de modo definitivo.

A primeira foi a percepção de que eu poderia usar personagens da literatura brasileira para contar essa história, recorrendo às suas vozes narrativas para dar conta do mundo e dos acontecimentos ao redor do enredo principal. E foi assim que cheguei a Isaías Caminha (Memórias do Escrivão IC, de Lima Barreto), chegando a Porto Alegre dos Amantes – não queria mais uma cidade desconhecida e sim uma cidade com a qual tivesse uma relação afetiva também – para escrever uma reportagem sobre os crimes de Louison, então internado num hospício sob a direção de Simão Bacamarte (O Alienista, de Machado de Assis).

Ao lado desses ícones, teria outros cenários que reuniriam também personalidades literárias. De um lado, o Palacete dos Prazeres, prostíbulo de luxo frequentado por Louison e suas vítimas, então sob a administração de Rita Baiana, Léonie e Pombinha (O Cortiço, de Aluízio de Azevedo). Do outro, uma sociedade secreta chamada Parthenon Místico (numa alusão ao Partenon Literário que existiu em Porto Alegre no século 19), formada pelos aventureiros do oculto Sergio e Bento Alves (O Ateneu, de Raul Pompeu), pelo cientista louco Doutor Benignus (criado por Augusto Emilio Zaluar num romance homônimo), pela médium indígena Vitória Acauã (Contos Amazônicos, de Inglês de Souza) e o imortal satanista Solfieri (Noite da Taverna, de Alvares de Azevedo). Além disso, abrilhantariam o grupo a presença de uma Luneta Mágica (criada por Joaquim Manuel de Macedo) e A Ilha do Desencanto (cenário criado por Apeles Porto Alegre no romance Georgina).

O segundo elemento adveio da intenção de escrever uma história popular, direcionada a um público juvenil/adulto. Foi aí que a estética steampunk surgiu, com seus zepelins, autômatos, utensílios místicos & ferramentas tecnostáticas. Com o verniz retrofuturista, voltaria também ao tempo dos grandes capotes e sobretudos e aos vestidos de festas escuros e decotados, alocando a narrativa num frio e chuvoso – por que não cheio de neblina? – julho gaúcho.

A partir deste conceito, cujo primeiro argumento postarei a seguir, segui com a escrita recuperando do que já tinha pronto alguns de seus antigos textos. Foi mais ou menos neste momento do trabalho, que fiquei sabendo do concurso a “Fantasy quer o seu mundo”. E foi aí que a correria realmente começou.

02/12/2014 – Algumas ideias sobre Processo Criativo

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Algumas ideias sobre Processo Criativo

Santa Maria da Bocarra do Monte, 02 de dezembro de 2014.

Neste Noitário de Trabalho, espaço que contrastará com a minha jornada diária, postarei informações referentes à criação de Brasiliana Steampunk, sobre meu processo de escrita, os bastidores de produção, entre outras reflexões que proporei ao intrépido leitor ou leitora. Como gosto muito deste tipo de discussão e como tenho uma predileção à verborragia, decidi limitar o que escreverei por aqui a mil palavras, nem mais, nem menos.

Isso porque acho adequado não abusar da paciência do leitor com textos que não possam ser consumidos num espaço de cinco minutos. No meu caso, será também um alívio poder suspender a escrita de outros textos mais longos – acadêmicos ou ficcionais – para simplesmente deitar sobre o papel ou sobre a tela reflexões, ideias & críticas no que concerne à literatura, cultura, estética e outras áreas relacionadas a “Lição de Anatomia” e ao estilo retrofuturista como um todo.

Se você está se perguntando qual a validade de um texto sobre a criação de um texto, posso garantir que a reflexão sobre o que fazemos é fundamental para o nosso crescimento como artistas. Ademais, porque é legal! Eu, particularmente, adoro ouvir/ler meus escritores prediletos falarem ou discutirem sobre os seus próprios processos de escrita. Para mim, é como poder estar lá, atrás do seu artista preferido, espiando por cima do seu ombro enquanto ele trabalha e cria e escreve e reescreve e deleta e reescreve e edita e altera… e por aí vai. Neste caso, me vem à mente não apenas a obra como também a forma como três escritores em especial discutem e abordam essa questão.

Como um grande admirador de Alan Moore, Neil Gaiman e Anne Rice, releio com gosto textos diversos desses autores que tratam simplesmente de seus próprios processos criativos. No caso de Moore, indico o projeto apresentado para Watchmen (publicado aqui na edição definitiva da Panini), bem como Alan Moore O Mago das Histórias de Gary Spencer. De Gaiman, não deixem de ler o projeto inicial para Sandman (publicado aqui no primeiro volume da edição definitiva, também pela Panini), além do excelente Sandman Companion, de Hy Bender. Por fim, de Rice, sugiro os Conversations with Anne Rice, conversa com a autora sobre sua vida, sua obra e suas opiniões sobre sexo, pornografia e arte, de Michael Riley, e The Unauthorized Anne Rice Companion (1996), editado por George Beahm, que republica diversas de suas entrevistas.

Ao ler essas entrevistas e textos, o que aprendi foi a importância não apenas de se fazer literatura como a importância de se pensar em como se está fazendo sua arte e de quais as suas razões para tanto. Não é apenas sobre contar histórias. É sobre contar histórias para um determinado público, sobre um determinado assunto, de um determinado modo. Neste caso, a reflexão sobre a própria criação, bem como as tentativas de respostas a esses pronomes interrogativos (o quê, por quê, pra quem e como), torna-se fundamental para o escritor tenha bem em mente o que está fazendo.

No meu caso, Brasiliana Steampunk é sobre várias coisas. Mas em especial, é uma história sobre histórias e sobre histórias brasileiras, criadas e contadas por autores como Álvares de Azevedo, Machado de Assis, Inglês de Souza, Raul Pompeia, Lima Barreto e muitos outros. Mas obviamente ao homenagear esses autores na forma de pastiche retrofuturista estou menos dialogando com eles e mais com o público contemporâneo e com suas próprias ideias, opiniões, constatações ou mesmo aflições.

“Lição de Anatomia” surgiu de uma ideia sobre dois estereótipos: o do herói e do vilão, vivendo num mundo no qual essas áreas definidas (bem e mal, justiça e corrupção, branco e preto, direita e esquerda etc) seriam corroídas por um relativismo moral inerente. Louison não seria essencialmente vilanesco e nem Britto Cândido perfeitamente heroico. Além disso, queria um romance que fosse sobre preconceito, violência e vingança, numa cidade não de Casais e sim de Amantes, na qual questões de gênero e sexualidade fossem tratadas não apenas com relativa naturalidade mas como os tópicos fascinantes que sempre foram.

Ora, quer dizer que seu romance tem dois casais gays? Sergio e Bento Alves e Léonie e Pombinha. Minha resposta era não apenas um “sim” enfático como um “por que não?”. Mas não apenas isso. Essa ideia não é minha. Estava lá, no Ateneu de Raul Pompeia e no Cortiço de Aluízio de Azevedo. Assim, por que não usar essas ideias, que estão por aí, circundando nossa cultura há tanto tempo? Por que não trazê-la de volta às nossas rodas de discussão, sejam elas em bares ou em salas de aula?

Parece pretencioso, eu sei, mas toda a arte o é, uma vez que ela se apresenta sempre como uma tentativa de alterar a percepção de seus leitores. E no caso de Brasiliana Steampunk, “pretensão” é tudo o que esta série almeja.

Pronto, acho que para uma primeira postagem de mil palavras, consegui atingir o ponto pretendido. Você está na dúvida se esta postagem tem de fato mil palavras? Faça o teste. Selecione, copie e cole num editor de texto e utilize a ferramenta “Contar Palavras”.

Vou te dar alguns segundos pra fazer isso.

(Enquanto isso, vou buscar água porque se manter hidratado é bem importante!)

Fez?

Viu? Falei a verdade. E eu sempre falo a verdade.

Exceto quando escrevo ficção, que a mais verdadeira das mentiras.

Aqui, todavia, pretendo tratar das verdades que perpassam a criação dessas mentiras que todos nós adoramos.

Quando abrimos um livro, somo como aquela criança que está diante do mágico de circo ou teatro. Queremos ver o truque. Queremos acreditar nele. Queremos que o sujeito com a cartola seja profissional e talentoso o bastante para nos fazer acreditar em magia.

Em minha opinião, arte é sobre isso.

Acreditar numa verdade de mentira que é pura magia.

E isso basta para uma primeira reflexão sobre processo criativo.

Mil palavras.

Nem mais.

Nem menos.

Até breve, caro explorador ou querida aventureira

Enéias Tavares

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