27/12/2014 – A criação de Lição de Anatomia – Parte II

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O Primeiro Argumento

Antes de mergulhar na escrita do primeiro volume de Brasiliana Steampunk – na verdade, muito antes de saber que a série seria de fato uma série – pensei que seria fundamental detalhar a minha proposta num argumento que poderia ilustrar a possíveis editores quais eram os meus planos. O que segue, é o primeiro “brainstorm” do que viria a ser “Lição de Anatomia”. Neste argumento, havia ainda uma mescla entre personagens históricos e literários e um centralidade maior de heróis machadianos, que por fim foram riscados da versão final.

Além disso, não tinha ainda ideia alguma de como resolveria os grandes problemas narrativos que havia proposto ou mesmo como usaria essas diferentes vozes literárias para contar a história de Louison e Cia. Por outro lado, a escrita do argumento revelava uma segurança maior com o universo que estava começando a surgir. Neste interim, enquanto pensava em aprofundar o argumento, dedicava horas e horas à leitura dos clássicos que iria conspurcar/homenagear, anotando ideias, construções frasais, padrões vocabulares, entre outras marcas textuais que seriam parodiadas por suas contrapartes retrofuturistas.

“O enredo se passa entre os dias 10 e 24 de Julho de 1911, data que marca o início do transporte de passageiros do futurístico Zeppelin Brazil D658 entre as capitais do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Nesta, vive o médico, pintor e ensaísta Antoine Frederico Louison, figura controversa e escandalosa que foi presa pelo Investigador Pedro Britto Cândido sob suspeita de crimes que desafiam a lógica, a moralidade e a metafísica. Enquanto o temível doutor está encarcerado, seu sobrado é interditado e investigado. O casarão fica próximo ao verdejante e pantanoso Parque da Redenção, mais conhecido nos arredores como Bueiro da Perdição. No escritório de Louison, as grosseiras e devotas forças policiais apreendem escritos, diários e utensílios de rara precisão e misteriosa procedência. Em seu julgamento, para o horror dos presentes e júbilo da imprensa, os corvos jurídico-publicitários apresentam indícios de que Louison seduzira, alimentara, entorpecera e matara no mínimo sete vítimas, usando-as como modelos de estudos anatômicos. Após sua condenação, o médico é enviado ao Asilo São Pedro para Criminosos Lunáticos, Esquizofrênicos Seriais e Histéricas Incontroláveis, sob a vigilância do centenário carrasco Simão Bacamarte, instalado na capital gaúcha desde o escândalo do hospício-bordel Casa Verde. Inexplicavelmente, depois de três dias e quatro noites, Louison escapa, desaparecendo no ar noturno como um fantasma de folhetim. Para a inquietação das Tropas e prazer dos pasquins de plantão, deixa em sua cela um manuscrito cabalístico ilegível, vestes dobradas sobre o leito e uma luneta mágica que, dependendo do ajuste de seu dispositivo mecânico, mostra diferentes facetas de objetos, seres e lugares.

O romance, dividido em cinco movimentos operísticos, apresenta vários narradores, como Isaias Caminha, Simão Bacamarte, Sergio Pompeu, Cândido e o próprio Louison. Ademais, tal relato reproduz, pela primeira vez ao público, páginas do relatório policial que levou à captura, parágrafos dos autos do processo, que incluem dramáticos testemunhos de vizinhos que nada viram mas que de tudo sempre suspeitaram, além de trinta páginas escandalosas do diário pessoal do Doutor – registro intragável, não recomendado a leitores sensíveis e cardíacos, que confirma as suspeitas sobre os atos imorais e pérfidos que o médico praticou contra figuras notórias da sociedade porto-alegrense do período, figuras que compunham a seleta camarilha estética que o próprio facínora integrava. No último movimento do romance, Cândido descobrirá a verdade sobre a fuga do celerado, Louison garantirá a sua partida em direção ao Rio de Janeiro a bordo do Zeppelin em formidável companhia e o leitor será surpreendido com a verdadeira identidade de um dos heróis desta tenebrosa narrativa.

Tal admirável experimento romanesco apresenta ainda como coadjuvantes os investigadores ocultistas Sergio Pompeu e Beatriz Amarante, ambos integrantes da sociedade secreta Partenon Místico, o dândi africano Joãozinho Caixa Alta, o padre cientista Marcel de Souza, especialista em transmissão de voz e em pictogramas photo-temporais, o jornalista, agitador e anarquista Isaías Caminha, a enigmática médium indígena Vitória Acauã, o reencarnado José Maria, devoto da Igreja do Diabo e íntimo do Bruxo do Cosme Velho e um espírito chamado Braz, o jovem aventureiro Bento Alves, as cafetinas de luxo Rita Baiana, Pombinha e Léonie, donas do Palacete dos Deleites, o alquimista e imortal Solfieri de Azevedo e a libertina Madame de Quendal, entre outras personalidades de inegável requinte, renome e prestígio, todas historicamente ficcionais.

Este primeiro volume, intitulado Lição de Anatomia, configura um investimento folhetinesco que une os gêneros policial e horror à estética steampunk. Trata-se de um mundo no qual personagens literárias mesclam-se a personagens autorais e históricas, no qual um herói de Álvares de Azevedo pode garantir sua imortalidade e homenagear seu criador assumindo seu sobrenome, no qual poetas e figuras históricas dividem a cena com um hipotético Sergio Pompeu e no qual um dândi negro pode visitar o cabaré de Rita Baiana, self-made woman de renome mundial. Nesse universo, onde a linha divisória entre o real e o ficcional é borrada pelo vapor futurista, Zeppelins cortam o céu esfumaçado de uma decadente Porto Alegre art nouveau, ruas são iluminadas por luz photoelétrica, bondes mecanizados carregam passageiros misteriosos, assassinos anônimos visitam confeitarias espíritas, cabalistas transmutam-se em larápios magistas e líderes político-religiosos se revelam malfeitores, todos entrelaçados no encontro singular entre Louison, Madame de Quendal e Brito Cândido. Trata-se de um mundo de lampiões de zinco e prata, requintadas carteiras metálicas de rapé, fumos e incensos orientais, cortinas vermelhas e divãs acetinados, floretes afiados e bastões de madrepérola, jogatina legalizada e licores proibidos, prazeres mórbidos e ideais nada utópicos.”

No final de 2013, reuni coragem e enviei o argumento a um editor paulistano, à época responsável por uma editora de médio porte e reconhecida pelo investimento nos gêneros de ficção científica, fantasia e horror. A resposta foi promissora. Informou-me ele que o argumento era bom, mas que nada poderia ser feito sem antes ver o manuscrito. Foi com esse incentivo em mente que continuei a escrita do primeiro romance de Brasiliana Steampunk.

 

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